Quem já passou pelo centro de Natal (RN) pode
ter reparado na banca 7ª Arte, famosa por vender filmes raros e pirateados.
Para os clientes do local, tão importante quanto os cineastas Jean-Luc Godard e
Ingmar Bergman é Seu Inácio Magalhães de Sena, 75 anos. Ele não é funcionário
da banca, mas está lá todas as segundas, quartas e sextas-feiras, pela manhã,
dando dicas de cinema a qualquer um que estiver interessado.
Ex-funcionário dos Correios e ex-arquivista
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Seu Inácio, que só
estudou até a quarta-série, afirma ter visto mais de 20 mil filmes. E, como
tanto conhecimento dificilmente poderia ser guardado somente na memória, traz
consigo cadernos com anotações sobre a maioria das películas que viu –ao lado
do ítem 16.165 de um dos cadernos, por exemplo, lemos o título "118
Dias" (2014), com Gael García Bernal, classificado como "bom"
pelo cinéfilo.
Graças à fama que conquistou na cidade e ao
seu amor pelo cinema, Seu Inácio acabou se tornando, ele mesmo, tema de um
filme. Virou personagem do documentário em curta-metragem "Sêo Inácio (ou
o Cinema do Imaginário)", primeira produção potiguar a ser selecionada
para o Festival de Gramado, que neste ano será realizado entre 7 e 15 de
agosto.
O diretor do curta, Helio Ronyvon, conta que
ainda era um estudante de rádio e TV quando entrou na banca 7ª Arte querendo
entrevistar o proprietário para um trabalho da faculdade. "O dono não quis
dar entrevista e disse o tempo todo para falarmos com Seu Inácio. Em menos de
três minutos de conversa, decidimos que a vida dele merecia um filme",
contou Ronyvon, por telefone, ao UOL.
Dali em diante, foram três anos de
convivência, nos quais o diretor pôde captar a intimidade do personagem. Seu
Inácio não é apenas aficionado por filmes. Também vive, literalmente, rodeado
de livros. Em uma casa pequena, a cerca de 3 km do centro de Natal, ele dorme
numa rede cercada por pilhas e pilhas de publicações e DVDs. "Vivo na
verdadeira muralha da China de livros. Quando me viro, bato as pernas nos
livros. É toda uma vida dedicada a isso", disse ele ao UOL, também por
telefone.
A paixão pelos livros e pelo cinema começou
quando ainda era menino e morava em Ceará-Mirim, cidade da região metropolitana
de Natal. Ele conta que, para ganhar um dinheirinho e ajudar a família,
carregava as latas de filme do trem até o cinema da cidade, onde também vendia
doces.
Se na literatura ele se encantou primeiro com
o cordel, o contato com a telona começou com os westerns e os filmes de terror.
Mais tarde, passou ler autores como os brasileiros Graciliano Ramos e José Lins
do Rego, o russo Dostoiévski e o francês Balzac. Já no cinema, clássicos de
Federico Fellini e Michelangelo Antonioni, entre outros, despertaram o seu
interesse.
Dura vida de cinéfilo
Durante os 23 anos em que trabalhou nos
Correios e os 12 seguintes na UFRN --até se aposentar em 1992--, não foi tão
fácil manter o cinema e a literatura como hobbies. "No começo, eu via
esses filmes com a maior dificuldade, porque em Natal só tinha um cinema de
arte. Pegava um ônibus para Recife, que fica a 300 km de Natal, via três filmes
de uma vez. Depois pegava um táxi para a rodoviária para voltar para Natal. Eu
fiz muito isso e ficava morto de cansado", conta.
Posteriormente, a chegada da aposentadoria,
assim como a do o VHS e do DVD, turbinaram seu amor pelos filmes. Agora, Seu
Inácio pode ver pelo menos dois filmes por dia sem sair de casa, mesmo que a
qualidade não seja lá aquela maravilha. "Infelizmente, hoje a gente tem
que viver com o DVD pirata. Se o governo interferisse para que o DVD fosse mais
barato, ninguém cometeria essa contravenção que prejudica o diretor do
filme", opina.
Quando conversou com o UOL, Inácio estava
assistindo a "Nina" (2004), de Heitor Dhalia. "É uma releitura
de 'Crime e Castigo' [de Dostoiévski]. Achei maravilhoso", contou. Mas, se
alguém aparecer por esses dias na banca 7ª Arte e resolver consultá-lo, o
aposentado, com certeza, indicará alguma produção do cinema argentino, pelo
qual anda encantado. "O cinema argentino atual é uma coisa maravilhosa.
'Um Conto Chinês' é fantástico. Aliás, quase todos com o [ator] Ricardo Darín.
Às vezes, fico achando que todos os filmes argentinos são com ele."
O cinema iraniano, por sua vez, é outro que
sempre tem espaço nas indicações de Seu Inácio. Ao ser questionado se já viu
"A Separação", daquele país, responde: "Esse eu não gosto muito
porque tem essa coisa de divórcio, e eu tenho horror a briga de família. Minha
mãe se casou de novo, e meu padrasto era uma peste. Isso me marcou uma
coisinha". Se for para indicar um filme iraniano, ele prefere o
"Balão Branco", que "é um filme de criança, mas passa uma
mensagem política forte".
A internet também tem sido bastante presente
na vida de Seu Inácio, que, além de baixar alguns filmes, pôde descobrir que o
curta-metragem estrelado por ele, vencedor de prêmios nos festivais Taquary,
Picuri e Guiamum, lhe deu certa fama. "Estou recebendo muitas felicitações
pelo Facebook, mas me dá certo incômodo. Sou uma pessoa muito recatada, e esse
negócio de fama é meio desagradável."
Se depender da equipe do filme, Inácio ficará
ainda mais famoso. Helio Honyvon e outros envolvidos no projeto fazem uma vaquinha virtual para levar o
protagonista até o Festival de Gramado, que só arca com as despesas de viagem
do diretor. "Tenho um pouco de vergonha dessas coisas, mas espero que as
autoridades se sensibilizem", conclui. Famoso ou não, Seu Inácio segue
dando dicas na 7ª arte, mas tem uma frustração: "Eu gostaria que todos os
filmes tivessem happy end, mas tem muito 'mau end' por aí".
Fonte: UOL – 21/07/2015
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