Entre os anos cinquenta e sessenta João Pessoa vivenciou uma intensa e
mais ou menos generalizada “atmosfera cinematográfica”. Na verdade, era o que
acontecia no Brasil e no mundo, mas aqui, considerada a pequenez da cidade,
houve características talvez particulares. Uma delas pode se dizer que foi a
enorme ênfase posta na atividade da crítica de cinema. Quem tem idade para
tanto – meu caso - lembra da assiduidade e empenho com que todo um grupo,
relativamente numeroso, de críticos pessoenses escrevia, diariamente, nos jornais
locais, sobre a sétima arte.
O nome mais destacado nessa atividade foi sem dúvida o
de Antônio Barreto Neto (1938-2000), não tanto por ter sido ele um dos mais
assíduos nos jornais da época, mas justamente porque foi, de longe, o mais
sólido, hábil e fluente dos nossos críticos de cinema. Pessoalmente, Barreto
Neto foi, para mim, mais que um modelo, uma espécie de musa, que eu, a certa
distância respeitosa, admirava pelo talento e pela simplicidade. No meu
aprendizado de adolescente, Moniz Vianna e Paulo Emílio eram fantasmas
inatingíveis, enquanto que Barreto Neto (embora sem, na época, privar de sua
amizade) era o gênio da terra que, eventualmente, poderia ser tocado. Nunca
esqueço quando, final dos anos oitenta, pude pela primeira vez apertar a sua mão
e ouvir dele que me lia e gostava.
A rigor pode se dizer que Barreto Neto foi um desses
intelectuais em que a crítica foi eminentemente vocacional. No seu caso,
tratou-se da confluência de duas grandes paixões: o cinema e o jornalismo.
Perfeitamente a cavaleiro na teoria do cinema, não
atropelava o texto com terminologia técnica, sua linguagem sendo enxuta,
precisa, eficaz e o seu texto, estruturado de modo lógico, coerente, e,
portanto, didático, permitia a nítida distinção entre todas aquelas etapas fundamentais
à abordagem de um filme, a saber, a contextualização, a análise, a
interpretação e o julgamento. Sem nunca serem esquemáticos, os ensaios críticos
de Barreto Neto sabiam dosar essas etapas da leitura de um modo funcional,
equilibrado, muitas vezes a depender do próprio filme, aliás, como deve ser,
mas sempre procurando articular essas etapas de modo a nada resultar
excrescencial.
Assim, neles geralmente o leitor tomava informação
sobre (não necessariamente nessa ordem): o filme, o diretor, a escola, a época,
ou a cinematografia a que pertencia; via investigados, com pertinência,
aspectos formais, sempre confrontados com os problemas de conteúdo
equivalentes; acompanhava a associação da temática com a realidade, mas,
sobretudo, em relação aos recursos expressionais do filme que estava sendo
analisado; penetrava em insights que
desvendavam o menos óbvio na estrutura do filme; constatava colocações
apreciativas que se ligavam, de forma lógica, à discussão mantida no nível
analítico, ou interpretativo.
Isso tudo construído de modo orgânico e,
principalmente, com dicção simples, elegante, acessível e agradável, que
atendia aos anseios, a um só tempo, do apressado leitor de jornal e do curioso
que queria aprender sobre a sétima arte. De forma tal que, se reunido num só
espaço, o conjunto completo de seus ensaios críticos, não apenas propiciaria um
objetivo panorama histórico e estético do cinema, o mundial e o nacional, mas
também, uma visão original, sensível, apaixonada, inteligente, aguda, e
essencialmente iluminadora dessa que foi a arte do século XX.
Lamentavelmente, Barreto Neto faleceu sem ver os seus
textos reunidos em formato de livro. Só agora uma antologia da produção crítica
de Barreto Neto pode ser apreciada no mais do que oportuno livro “Cinema
por escrito” (A União, 2010) que, na condição de organizador, o
laborioso jornalista Sílvio Osias vem de editar. Certamente, uma das
publicações mais importantes que a Editora de A União já deu à luz.
Retrocedendo um pouco no tempo, aqui convido o leitor
a uma conversa com o nosso crítico: é que, comemorando os seus sessenta anos,
em 1998, Barreto Neto nos concedeu entrevista especial, que em seguida
reproduzo. De bom grado, Barreto Neto
relatou etapas de sua trajetória de crítico cinematográfico, começando com os
seus primeiros contatos com filmes e jornais, quando ainda era um garoto de
tenra idade na sua Coremas de origem.
“O cinema me fascinou desde menino – relatou - quando
uns frades missionários, depois dos ofícios religiosos, projetaram, numa grande
parece branca do lado de fora da igreja, um filme de guerra, em preto e branco,
chamado (nunca vou me esquecer) “A cruz de Lorena”. Foi – confessou
comovido - o primeiro filme que vi na vida”.
Já o primeiro jornal em que pôs os olhos foi o “Diário
de Pernambuco”, que o dono de uma mercearia lhe emprestava todo dia.
Ficou tão fascinado com essas leituras diárias que - “pode parecer coisa de
cinebiografia hollywoodiana” - se desculpou – “mas eu costumava arrancar folhas
dos cadernos escolares para fazer o meu jornal, escrito em letra de forma, a
lápis grafite, com “notícias” da família, dos amigos e das brincadeiras da
meninada”.
Quando a família mudou-se para Patos, o garoto Barreto Neto não perdia
as matinées de domingo do Cine
Eldorado, que também frequentava todas as vezes em que tinha chance de matar
aulas no colégio. De origem humilde, estudava à noite e trabalhava de dia numa
tipografia. Do salário que recebia, metade era gasta com livros e revistas,
dentre as quais a principal era “O Cruzeiro”, onde lia a coluna de
José Amádio cujos “comentários brincalhões e jocosos” passavam por crítica de
cinema.
Mas a crítica de cinema tout court, o jovem Barreto Neto só iria conhecer nos jornais da
capital, para onde mudou-se em 1957.
A coluna em A União, assinada por José Ramos,
depois por Jurandy Barroso e em seguida por Linduarte Noronha, e a de O
Norte onde se revezavam Geraldo Carvalho, Wills Leal e, de vez em
quando, Geraldo Sobral, foram as suas primeiras aproximações ao métier. Na
verdade, a sua iniciação na atividade de crítica cinematográfica foi precedida
de toda uma formação, que ele assim descreveu: “quando comecei a frequentar as
sessões e debates no “Cineclube de João Pessoa”, tive os primeiros contatos com
publicações especializadas, entre elas a Revista de crítica cinematográfica
de Minas Gerais.”
“Ao entrar para a redação de A União – continou -
conheci Linduarte Noronha, João Ramiro Melo e Vladimir Carvalho e, por
intermédio deles, Geraldo Carvalho, em torno de quem se aglutinava a turma de
cinema. Os papos com essa turma me deram régua e compasso para a aventura da
crítica. A timidez – revelou, saudoso - foi vencida por Vladimir, a quem eu
costumava mostrar o que escrevia. Um dia, ele pegou um desses textos e levou
para O
Correio da Paraíba.”
Segundo Barreto Neto, esse foi o pontá-pé inicial, mas
só começou de forma regular alguns meses depois, quando Linduarte Noronha
viajou ao Rio de Janeiro para montar o Cajueiro Nordestino e o deixou como
substituto na coluna de cinema de A União. “Comecei meio sem jeito –
relembrou, modesto como sempre – mas, com o estímulo da turma, acabei dando
certo”. E como deu, acrescentamos nós.
“Na Biblioteca Pública e na redação de A
União – prosseguiu – tive acesso aos grandes jornais do eixo Rio-São
Paulo e neles descobri os grandes críticos de cinema, como Moniz Viana, Alex
Vianny, Octávio Bonfim, Rubem Biáfora, Paulo Emílio, Paulo Perdigão, Sérgio
Augusto. Na Revista de Crítica Cinematográfica de Belo Horizonte, José
Haroldo Pereira, Cyro Siqueira, Maurício Gomes Leite, Sylviano Santiago, e
outros. Além desses críticos, eu lia todo livro sobre cinema que aparecia nas
livrarias locais, e os que adquiria fora, por encomenda.”
Particularmente instrutivo para uma eventual
reconstituição da época, é o seu depoimento sobre a saudosa Associação de
Críticos Cinematográficos da Paraíba: “A grande proliferação de críticos de
cinema em João Pessoa, coincidiu com a fase dos movimentos de renovação do
cinema no mundo, aí incluído o Brasil, mas foi também - nos informou, seguro -
o resultado da atuação da ACCP, um marco na difusão da cultura cinematográfica
em toda a Paraíba, uma vez que os reflexos de sua atuação se fizeram sentir
além da Capital. Direta ou indiretamente, foi a ACCP que abriu espaços para a
crítica em jornais e emissoras de rádio, aqui e em Campina Grande. Ela promoveu
exibições de filmes de arte, sempre seguidas de palestras, incentivou e apoiou
à fundação de cineclubes, organizou painéis, exposições, festivais.”
“Nada acontecia na cidade, em relação a cinema, que
não tivesse a participação ou pelo menos o apoio institucional da ACCP, que
surgiu – relatou - como uma espécie de reação à orientação católica do
“Cineclube de João Pessoa”, pautada nas diretrizes da Encíclica Vigilanti
Cura, do Papa Pio XII. Essa encíclica, de 1955, aproximava a igreja do
cinema, visto como um veículo potencial de catequese. Co-fundado pelo Professor
José Rafael de Menezes, o “Cineclube de João Pessoa”, fruto dessa orientação,
propunha uma crítica que privilegiasse os valores morais do filme, em
detrimento dos valores estéticos. Tinha até uma “cotação moral” dos filmes
exibidos na cidade, semanalmente divulgada. Pois a ACCP – esclareceu Barreto
Neto - surgiu da rebeldia dos críticos mais jovens contra essa orientação.”
Segundo Barreto Neto a ACCP nunca foi legalmente
estruturada e não tinha recursos financeiros, nem sede própria, funcionando
numa salinha da API. “Nunca cobrou mensalidade dos sócios. Assim, sem
patrimônio e sem capital, vivia do prestígio dos sócios (quase todos bem
posicionados nos jornais onde escreviam) junto ao poder público e a setores de
iniciativa privada”, e, no entanto, “agitou realmente o ambiente cultural da
cidade, e isso, de forma democrática, atraindo para suas promoções, escritores,
professores universitários e jornalistas. Virginius da Gama e Melo e Juarez
Batista, por exemplo, participaram várias vezes de suas atividades. Quando
esses sócios abandonaram a crítica, atraídos por atividades mais rendosas do
que o jornalismo, a ACCP esvaziou-se. Aí – lamentou - veio a Ditadura, pondo
sob suspeita todo tipo de associação. E a ACCP acabou.”
Quais os requisitos para uma pessoa fazer crítica de
cinema? Para Barreto Neto é necessária, antes de tudo, uma formação básica.
“Por formação básica – explicou-nos – quero dizer um
mínimo de conhecimento da teoria geral da arte e das teorias específicas do
cinema. Sem ter pelo menos noções gerais de linguagem e história
cinematográficas, não se pode “ler” um filme. E sem “ler” um filme não se pode
analisá-lo. Além disso, o máximo que se puder acumular de cultura geral”.
Jornalista competente e dedicado, Barreto Neto
terminaria por galgar uma bem-sucedida carreira na área, atravessando todos os
escalões da profissão, vindo a ocupar posições destacadas, como diretor ou
editor geral. Mas claro, para meio mundo de cinéfilos paraibanos, é como
crítico de cinema que seu nome se impõe à posteridade.
A minha última pergunta a Barreto Neto não poderia
deixar de ter sido sobre as suas preferências cinematográficas, e lhe pedi a
sua lista pessoal dos dez melhores filmes, em todos os tempos e espaços. Eis,
portanto, o supra sumo do cinema, segundo Antônio Barreto Neto:
Cidadão Kane (Orson Welles,
1942, E.U.A)
Ladrões de Bicicleta (Vittorio DeSica, 1948, Itália)
Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957, Suécia)
Rashomon (Akira
Kurosawa, 1950, Japão)
Viridiana
(Luis Buñuel, 1961, Espanha)
Rocco e Seus Irmãos (Luchino Visconti, 1960, Itália)
Oito e Meio
(Federico Fellini, 1963, Itália)
Rastros de Ódio (John Ford, 1956, E.U.A.)
Blow-up
(Michelangelo Antonioni, 1967, Itália)
Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954, E.U.A.)