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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A crítica cinematográfica como vocação: entrevista com Antônio Barreto Neto


Entre os anos cinquenta e sessenta João Pessoa vivenciou uma intensa e mais ou menos generalizada “atmosfera cinematográfica”. Na verdade, era o que acontecia no Brasil e no mundo, mas aqui, considerada a pequenez da cidade, houve características talvez particulares. Uma delas pode se dizer que foi a enorme ênfase posta na atividade da crítica de cinema. Quem tem idade para tanto – meu caso - lembra da assiduidade e empenho com que todo um grupo, relativamente numeroso, de críticos pessoenses escrevia, diariamente, nos jornais locais, sobre a sétima arte.

O nome mais destacado nessa atividade foi sem dúvida o de Antônio Barreto Neto (1938-2000), não tanto por ter sido ele um dos mais assíduos nos jornais da época, mas justamente porque foi, de longe, o mais sólido, hábil e fluente dos nossos críticos de cinema. Pessoalmente, Barreto Neto foi, para mim, mais que um modelo, uma espécie de musa, que eu, a certa distância respeitosa, admirava pelo talento e pela simplicidade. No meu aprendizado de adolescente, Moniz Vianna e Paulo Emílio eram fantasmas inatingíveis, enquanto que Barreto Neto (embora sem, na época, privar de sua amizade) era o gênio da terra que, eventualmente, poderia ser tocado. Nunca esqueço quando, final dos anos oitenta, pude pela primeira vez apertar a sua mão e ouvir dele que me lia e gostava.
A rigor pode se dizer que Barreto Neto foi um desses intelectuais em que a crítica foi eminentemente vocacional. No seu caso, tratou-se da confluência de duas grandes paixões: o cinema e o jornalismo.

Perfeitamente a cavaleiro na teoria do cinema, não atropelava o texto com terminologia técnica, sua linguagem sendo enxuta, precisa, eficaz e o seu texto, estruturado de modo lógico, coerente, e, portanto, didático, permitia a nítida distinção entre todas aquelas etapas fundamentais à abordagem de um filme, a saber, a contextualização, a análise, a interpretação e o julgamento. Sem nunca serem esquemáticos, os ensaios críticos de Barreto Neto sabiam dosar essas etapas da leitura de um modo funcional, equilibrado, muitas vezes a depender do próprio filme, aliás, como deve ser, mas sempre procurando articular essas etapas de modo a nada resultar excrescencial.

Assim, neles geralmente o leitor tomava informação sobre (não necessariamente nessa ordem): o filme, o diretor, a escola, a época, ou a cinematografia a que pertencia; via investigados, com pertinência, aspectos formais, sempre confrontados com os problemas de conteúdo equivalentes; acompanhava a associação da temática com a realidade, mas, sobretudo, em relação aos recursos expressionais do filme que estava sendo analisado; penetrava em insights que desvendavam o menos óbvio na estrutura do filme; constatava colocações apreciativas que se ligavam, de forma lógica, à discussão mantida no nível analítico, ou interpretativo.

Isso tudo construído de modo orgânico e, principalmente, com dicção simples, elegante, acessível e agradável, que atendia aos anseios, a um só tempo, do apressado leitor de jornal e do curioso que queria aprender sobre a sétima arte. De forma tal que, se reunido num só espaço, o conjunto completo de seus ensaios críticos, não apenas propiciaria um objetivo panorama histórico e estético do cinema, o mundial e o nacional, mas também, uma visão original, sensível, apaixonada, inteligente, aguda, e essencialmente iluminadora dessa que foi a arte do século XX.

Lamentavelmente, Barreto Neto faleceu sem ver os seus textos reunidos em formato de livro. Só agora uma antologia da produção crítica de Barreto Neto pode ser apreciada no mais do que oportuno livro “Cinema por escrito” (A União, 2010) que, na condição de organizador, o laborioso jornalista Sílvio Osias vem de editar. Certamente, uma das publicações mais importantes que a Editora de A União já deu à luz.

Retrocedendo um pouco no tempo, aqui convido o leitor a uma conversa com o nosso crítico: é que, comemorando os seus sessenta anos, em 1998, Barreto Neto nos concedeu entrevista especial, que em seguida reproduzo.  De bom grado, Barreto Neto relatou etapas de sua trajetória de crítico cinematográfico, começando com os seus primeiros contatos com filmes e jornais, quando ainda era um garoto de tenra idade na sua Coremas de origem.

“O cinema me fascinou desde menino – relatou - quando uns frades missionários, depois dos ofícios religiosos, projetaram, numa grande parece branca do lado de fora da igreja, um filme de guerra, em preto e branco, chamado (nunca vou me esquecer) “A cruz de Lorena”. Foi – confessou comovido - o primeiro filme que vi na vida”.

Já o primeiro jornal em que pôs os olhos foi o “Diário de Pernambuco”, que o dono de uma mercearia lhe emprestava todo dia. Ficou tão fascinado com essas leituras diárias que - “pode parecer coisa de cinebiografia hollywoodiana” - se desculpou – “mas eu costumava arrancar folhas dos cadernos escolares para fazer o meu jornal, escrito em letra de forma, a lápis grafite, com “notícias” da família, dos amigos e das brincadeiras da meninada”.
Quando a família mudou-se para Patos, o garoto Barreto Neto não perdia as matinées de domingo do Cine Eldorado, que também frequentava todas as vezes em que tinha chance de matar aulas no colégio. De origem humilde, estudava à noite e trabalhava de dia numa tipografia. Do salário que recebia, metade era gasta com livros e revistas, dentre as quais a principal era “O Cruzeiro”, onde lia a coluna de José Amádio cujos “comentários brincalhões e jocosos” passavam por crítica de cinema.

Mas a crítica de cinema tout court, o jovem Barreto Neto só iria conhecer nos jornais da capital, para onde mudou-se em 1957.

A coluna em A União, assinada por José Ramos, depois por Jurandy Barroso e em seguida por Linduarte Noronha, e a de O Norte onde se revezavam Geraldo Carvalho, Wills Leal e, de vez em quando, Geraldo Sobral, foram as suas primeiras aproximações ao métier. Na verdade, a sua iniciação na atividade de crítica cinematográfica foi precedida de toda uma formação, que ele assim descreveu: “quando comecei a frequentar as sessões e debates no “Cineclube de João Pessoa”, tive os primeiros contatos com publicações especializadas, entre elas a Revista de crítica cinematográfica de Minas Gerais.”

“Ao entrar para a redação de A União – continou - conheci Linduarte Noronha, João Ramiro Melo e Vladimir Carvalho e, por intermédio deles, Geraldo Carvalho, em torno de quem se aglutinava a turma de cinema. Os papos com essa turma me deram régua e compasso para a aventura da crítica. A timidez – revelou, saudoso - foi vencida por Vladimir, a quem eu costumava mostrar o que escrevia. Um dia, ele pegou um desses textos e levou para O Correio da Paraíba.”

Segundo Barreto Neto, esse foi o pontá-pé inicial, mas só começou de forma regular alguns meses depois, quando Linduarte Noronha viajou ao Rio de Janeiro para montar o Cajueiro Nordestino e o deixou como substituto na coluna de cinema de A União. “Comecei meio sem jeito – relembrou, modesto como sempre – mas, com o estímulo da turma, acabei dando certo”. E como deu, acrescentamos nós.

“Na Biblioteca Pública e na redação de A União – prosseguiu – tive acesso aos grandes jornais do eixo Rio-São Paulo e neles descobri os grandes críticos de cinema, como Moniz Viana, Alex Vianny, Octávio Bonfim, Rubem Biáfora, Paulo Emílio, Paulo Perdigão, Sérgio Augusto. Na Revista de Crítica Cinematográfica de Belo Horizonte, José Haroldo Pereira, Cyro Siqueira, Maurício Gomes Leite, Sylviano Santiago, e outros. Além desses críticos, eu lia todo livro sobre cinema que aparecia nas livrarias locais, e os que adquiria fora, por encomenda.”

Particularmente instrutivo para uma eventual reconstituição da época, é o seu depoimento sobre a saudosa Associação de Críticos Cinematográficos da Paraíba: “A grande proliferação de críticos de cinema em João Pessoa, coincidiu com a fase dos movimentos de renovação do cinema no mundo, aí incluído o Brasil, mas foi também - nos informou, seguro - o resultado da atuação da ACCP, um marco na difusão da cultura cinematográfica em toda a Paraíba, uma vez que os reflexos de sua atuação se fizeram sentir além da Capital. Direta ou indiretamente, foi a ACCP que abriu espaços para a crítica em jornais e emissoras de rádio, aqui e em Campina Grande. Ela promoveu exibições de filmes de arte, sempre seguidas de palestras, incentivou e apoiou à fundação de cineclubes, organizou painéis, exposições, festivais.”

“Nada acontecia na cidade, em relação a cinema, que não tivesse a participação ou pelo menos o apoio institucional da ACCP, que surgiu – relatou - como uma espécie de reação à orientação católica do “Cineclube de João Pessoa”, pautada nas diretrizes da Encíclica Vigilanti Cura, do Papa Pio XII. Essa encíclica, de 1955, aproximava a igreja do cinema, visto como um veículo potencial de catequese. Co-fundado pelo Professor José Rafael de Menezes, o “Cineclube de João Pessoa”, fruto dessa orientação, propunha uma crítica que privilegiasse os valores morais do filme, em detrimento dos valores estéticos. Tinha até uma “cotação moral” dos filmes exibidos na cidade, semanalmente divulgada. Pois a ACCP – esclareceu Barreto Neto - surgiu da rebeldia dos críticos mais jovens contra essa orientação.”

Segundo Barreto Neto a ACCP nunca foi legalmente estruturada e não tinha recursos financeiros, nem sede própria, funcionando numa salinha da API. “Nunca cobrou mensalidade dos sócios. Assim, sem patrimônio e sem capital, vivia do prestígio dos sócios (quase todos bem posicionados nos jornais onde escreviam) junto ao poder público e a setores de iniciativa privada”, e, no entanto, “agitou realmente o ambiente cultural da cidade, e isso, de forma democrática, atraindo para suas promoções, escritores, professores universitários e jornalistas. Virginius da Gama e Melo e Juarez Batista, por exemplo, participaram várias vezes de suas atividades. Quando esses sócios abandonaram a crítica, atraídos por atividades mais rendosas do que o jornalismo, a ACCP esvaziou-se. Aí – lamentou - veio a Ditadura, pondo sob suspeita todo tipo de associação. E a ACCP acabou.”

Quais os requisitos para uma pessoa fazer crítica de cinema? Para Barreto Neto é necessária, antes de tudo, uma formação básica.

“Por formação básica – explicou-nos – quero dizer um mínimo de conhecimento da teoria geral da arte e das teorias específicas do cinema. Sem ter pelo menos noções gerais de linguagem e história cinematográficas, não se pode “ler” um filme. E sem “ler” um filme não se pode analisá-lo. Além disso, o máximo que se puder acumular de cultura geral”.

Jornalista competente e dedicado, Barreto Neto terminaria por galgar uma bem-sucedida carreira na área, atravessando todos os escalões da profissão, vindo a ocupar posições destacadas, como diretor ou editor geral. Mas claro, para meio mundo de cinéfilos paraibanos, é como crítico de cinema que seu nome se impõe à posteridade.

A minha última pergunta a Barreto Neto não poderia deixar de ter sido sobre as suas preferências cinematográficas, e lhe pedi a sua lista pessoal dos dez melhores filmes, em todos os tempos e espaços. Eis, portanto, o supra sumo do cinema, segundo Antônio Barreto Neto:

Cidadão Kane (Orson Welles, 1942, E.U.A)
Ladrões de Bicicleta (Vittorio DeSica, 1948, Itália)
Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957, Suécia)
Rashomon (Akira Kurosawa, 1950, Japão)
Viridiana (Luis Buñuel, 1961, Espanha)
Rocco e Seus Irmãos (Luchino Visconti, 1960, Itália)
Oito e Meio (Federico Fellini, 1963, Itália)
Rastros de Ódio (John Ford, 1956, E.U.A.)
Blow-up (Michelangelo Antonioni, 1967, Itália)

Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954, E.U.A.)

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